quarta-feira, 17 de abril de 2013

MARCHETARIA DO ACRE




Um espírito caboclo da floresta incorporando o artista admirável, um homem de Deus e de quatro mulheres, Linda, Taís, Elis e Ana. Uma ardência interna inconsumível envolvida com a simplicidade dos bons, dos de bem com sua própria pele.

Assim é MAQUESON, nascido em 30 de agosto de 1958, no Seringal Flora, município de Porto Walter, em meio às florestas do Acre, no ocidente brasileiro.

Menino “medonho” de danado, no linguajar de Dona Chagas, a mãe, que nunca lhe viu andar, apenas correr. O primeiro choque de puraquê, o peixe elétrico, é gravação intacta na mente do menino-caboclo de matas e de rios.

O avô, cego pela fumaça da borracha, ensinou-lhe um B-a-Bá original: gravetos e sementes na floresta, pousados num tabuleiro com letras, abriu-lhe o mundo do A, do B, do C e de todas as histórias de selva.

Com o pai, cortou seringa e aprendeu a fazer barcos, motivos constantes de sua arte.

Ali viveu até a adolescência, buscando lagartos, caçando cobras, descobrindo os mistérios da mata, vivendo uma infância feliz num mundo único e isolado, desconhecido até hoje para a maioria dos brasileiros.

Em 1973, da liberdade do Seringal Flora parte para outro pequeno mundo, em Porto Walter, que lhe marcaria a alma, e a arte, para todo o sempre: o Colégio dos Padres alemães da Congregação do Espírito Santo – à qual a história do Acre está a dever reconhecimento, pela inimaginável presença educativa nos cafundós da Amazônia - que o receberia, aos 15 anos, para seus primeiros estudos formais.

Lá recebe seu primeiro papel: a certidão de nascimento, comprovando um nome único, de origens tão perdidas quanto desconhecidas: Maqueson, que se junta ao Pereira da Silva de seus ancestrais nordestinos, migrantes amazônicos atraídos pelo ouro branco da borracha do Acre.

Aos 18 anos, sem nunca por os pés para fora da floresta, Maqueson salta do trapézio com uma única rede de proteção: a orientação européia dos padres alemães,quando é enviado, como seminarista, para o desconhecido e distante sul brasileiro, Santa Catarina, onde estudará no Instituto Liebermann, na pequena cidade de Salete.

Um menino da floresta que sai direto do norte para o sul, sem intermediações contemporizadoras! Sorrindo e empapado pelo orgulho de suas raízes caboclas, Maqueson conta o início desses novos tempos com a memória de seu primeiro banho, quando confundiu detergente com shampoo, esse “sabão para cabelos” absolutamente desconhecido no seringal. Assim foi seu “batismo” sulista.

Suportando a solidão e a saudade, abre-se inteiramente para as primeiras lições de marchetaria, com base em um apurado conhecimento de base européia que se lhe vai acumulando, sob a orientação de Guilherme Shüler, mais um dos inúmeros alemães que lhe prestariam amizade e ensinamento ao longo de sua vida.

O artista começa a sair da toca a partir de 77: uma Fase Sacra se expressa nos trabalhos de temas religiosos: “A Santa Ceia”, “Pedro e Paulo”, “A Fuga para o Egito”, e “Nossa Senhora”.



Uma década rica de ensinamentos e aprendizados: filosofia, arte, psicologia, sociologia, história, botânica, história são fios que se entrelaçam sob um olhar atento em ver e compreender.

Mas o conflito se instala na alma do artista. O ano de 1986 é um ponto de inflexão e reflexão pessoal, artística e religiosa. Dúvidas e mais dúvidas se avolumam, pressões da alma e do mundo se enfrentam.

A volta para seu Acre propicia-lhe um reencontro com suas raízes, com suas árvores, com seus pássaros, com seus rios, com seus espíritos, com seu próprio espírito... enfim, com o agora menino-grande Maqueson, cuja própria natureza sente a falta da comunhão com a floresta.

Nesta passagem de volta ao Acre, amplia seu interesse artístico, apurando seus conhecimentos de marchetaria, sob a asa amiga e confiável do Padre Herbert Douteil, que será, para sempre, seu cúmplice na arte, seu fraterno amigo na vida, a quem podia abrir a alma, a cada momento.

Época também em que faz suas primeiras exposições, dentro e fora do Acre.

Em certo momento, Maqueson dá um tratamento cubista à representação dos temas sacros, coincidentemente em que se dedica aos estudos de história da arte e arquitetura. “As Meretrizes”, de 1987, é a obra que melhor retrata esse momento.

Flores começam a nascer e a crescer na obra do artista, em meados de 1988: antevisão do amor-mulher e de uma nova fase de vida pessoal que se expressa claramente quando se casa com Linda, em 1989, a catarinense que teve a garra de reinventar-se, incorporando ao seu sotaque sulista toda uma generosidade cabocla, ao lado de Maqueson. 

Mas o amor tem suas penas e o casamento suas exigências, inclusive materiais: Maqueson deixa o Acre e volta a viver no sul.

Flores e mais flores se derramam em seu trabalho com o nascimento das gêmeas Taís e Elis, obras impregnadas por sua visão maravilhada da imensidão dos campos floridos de Santa Catarina.

Dessa Fase das Flores, onde a paixão é a mão que guia o artista, são as obras “Jarra com Flores” e “Jarra com Flor Azul” as quais, sem desprenderem-se totalmente da estética européia apreendida, se abrem para uma anarquia profunda de cores, nuances, e sombras, como que topicalizando rosas e folhas.


Fase de Flores, mas, também, de conflitos novos que se avolumam e tomam espaço no coração de Maqueson: o tempo da criação briga com o tempo do “ganhar o pão”, o devaneio do homem com a arte se enfrenta com as responsabilidades do pai com as filhas, a assimilada cultura européia entra em rebelião com a alegre e anárquica plasticidade criativa da floresta.

Um caos criativo se instala e obriga Maqueson, em 1990, a retirar-se para um momento de intensa e sofrida reflexão, longe das três mulheres de sua vida, isolando-se nas montanhas de Salete, revolvendo seus barros internos, seus conhecimentos de filosofia, botânica, sociologia, psicologia, arte e religião, seus cânones europeus, suas decisões terrenas.

Aqui produz “Armário com Livros”, onde réguas, livros, regras, tradições, saberes e influências como que se encerram em um armário hipotético.

O final deste dolorido exílio espontâneo se traduzirá em uma obra única, jamais repetida: “Bosque”, onde brinca com céus claros, límpidos e plácidos, e goza a liberdade de sentir-se pronto para fazer o que quer.

Sente as asas da liberdade interna. Lambe suas feridas e percebe-se artista, pai, marido, pronto e maduro para não se enredar nas exigências de certa cultura que confundia o processo criativo com a indolência dos descompromissados.

Maturidade emocional lhe faz perceber que seus compromissos com a arte da marchetaria serão eternos, porque partem de suas próprias circunstâncias, fontes de sua salvação.

Como diria Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias. Se não salvo a elas como salvar a mim?!”

Salvar-se é voltar. A decisão de voltar Acre é definitiva, aristotelicamente necessária. Maqueson volta, e realiza uma das mais importantes exposições de sua carreira iniciante, em Brasília, com o apoio do Embaixador da Alemanha no Brasil, a qual lhe abrirá as primeiras portas de novos estudos no exterior, Itália e Alemanha, e de um mercado de artes, ainda difícil para um artista acreano.

Mas só em 1994 é que a família, superando todas as dúvidas – a troca do sul pelos confins do norte, a incerteza econômica do sobreviver, o restrito mercado para a arte da marchetaria - se reencontra de forma definitiva. Quando Linda, com o coração aberto para a floresta, e as meninas - agora com Ana, a caçula incluída - se unem a Maqueson na difícil, porém medianamente clara decisão de fazer da cidade de Cruzeiro do Sul -coincidente nome de orientação estrelar - à beira do Juruá, o seu mundo, mundo da arte, do viver e do crescer. O amigo Douteil é um pilar dessa decisão, com seu apoio fraterno e livre pensar.

Seu calendário a partir de então, começa a ser contado entre o “antes das meninas” e o “depois das meninas”.

Pobre, ainda desconhecido, mas em estado de grande paz interior, Maqueson mais uma vez, e agora para sempre, integra-se à natureza acreana, sua própria natureza, sua própria pele, sua própria razão de ser e de criar. Seu grande Reencontro, como diz alegre.

Esta fase de Reencontro, e volta definitiva às raízes, se inicia pela expressão das  obras “O Seringueiro”, “O Lago da Flora”, “O Maguari”, “O Pescador”, onde o artista, orgulhoso de sua “caboclice” pode dizer com um sorriso imenso e firme:

“A Floresta é meu Pai, a Floresta é minha Mãe”.

Essa paz não afasta os desafios: só um empréstimo no Banco do Brasil lhe permitirá comprar as primeiras máquinas e iniciar a produção de caixas com motivos amazônicos, visando uma produção maior: flores, tucanos, rosas, galhos, folhas, aves, tudo se reencontra nas caixas de Maqueson.



Em 1994, a nova solidão de quase dois anos de ausência da família – Linda volta ao sul com grave enfermidade que lhe custa uma prótese na coluna – embora lhe afete o coração não lhe esmorece o ânimo e a certeza de sua arte.

Os trabalhos seguem e começam a serem admirados, no Brasil e no exterior.

É um Maqueson inundadamente amazônico que se transmuda em palmeiras, folhas, árvores, troncos, com nuances, curvas, reflexos e contorcionismos que transitam entre marrons e sépias, passam por brancos e marfins, desfilam entre verdes e quase azuis, conjuntos de uma marchetaria única que se apodera de restos de raízes, plantas, troncos, veios e nós para dar nascimento a céus – Que céus! - ora de tempestuosas nebulosidades, ora límpidos e translúcidos, em contrapontos a matas de verdes imponentes onde flores, garças e tucanos se entremeiam com rios e lagos, ou se desentendem com árvores absurdamente frondosas que lhes tomam a frente. E surge a presença humana, humildemente respeitosa ao portento natural, se expressando em meio a barcos e barrancos, seres solitários, mas conciliados.

Em 2001, sua Escola de Marchetaria, onde ensina jovens acreanos a sonhar com o futuro, começa a tomar alento quando recebe sua primeira grande encomenda da então Brasil Telecom: 50 caixas a serem produzidas em um período mínimo de tempo. Sem capital, apenas com fé, coragem e muito trabalho as caixas são entregues a tempo de serem remetidas aos destinatários na Itália. Para alguns, um simples fato do cotidiano empresarial. Para Maqueson, a confiança para poder sonhar uma produção ampliada e iniciar uma relação sistemática com o mercado e viver de seu ofício de artista.

Entre idas e vindas, Maqueson apenas sobrevive economicamente.

 Nos anos 80, porém, com o apoio decisivo do Governo do Estado do Acre o Maqueson-artista começa a ser divulgado, no Acre e fora dele. Com o suporte do SEBRAE, a Marchetaria é consolidada, agora denominada Marchetaria do Acre.

Uma nova Fase se inicia na vida do artista, a partir de 2002: a dos gigantescos trabalhos.

O primeiro, Painel, para o Teatro Plácido de Castro, em Rio Branco, a capital do Acre, composto de duas obras de enormes dimensões, retrata a paisagem amazônica com linguagem e plasticidade únicas. O “diálogo” entre duas garças, em uma dessas obras, é algo de enorme beleza plástica e estética, expressão individual de um olhar intenso, próprio e profundo, de um mirar e admirar o mundo através da selva.

Em 2004, vem da Assembléia Legislativa do Acre, em Rio Branco, o pedido de uma nova e grande obra: a História da Revolução Acreana, que será retratada em nove imensos painéis, seguramente o maior conjunto de obra de arte em marchetaria de todo o mundo, realizado em mais de um ano e meio de duração.

 O esforço desse trabalho, as tormentas do artista em fazer algo tão grandioso, a solidão  e a distância da família, que ficou em Cruzeiro do Sul, a insegurança quanto aos resultados, o grande tempo de produção, tudo, enfim, se abate, ao final, sobre um artista exaurido e enfermo, que recusa propostas por algum tempo e que, mais uma vez, necessita de um novo exílio, dentro de sua floresta, dentro de si mesmo.

Recuperado na alma e no corpo, Maqueson delicia-se com o resultado de sua obra: aos elementos animais e vegetais de sua inspiração na natureza amazônica, surgem os homens - indígenas, com suas roupas multiformemente étnicas; políticos e diplomatas, com suas alegorias civilizatórias; heróis e soldados da borracha, em suas celebrações e vitórias. Enfim, o mundo das gentes se entrelaça ao mundo integral da floresta. Um prazer vivo de ser apreciado e difícil de ser contado.

A partir de então suas grandes obras se tornam motivo de rara felicidade para o artista: em “Paisagem Amazônica”, encomendada pelo Banco da Amazônia, em Belém, é notável e visível a plena confiança de um artista em grande, o irradiado prazer estético, a mistura da louca harmonia-desarmonia dos universos amazônicos, contrapostos a um majestoso pavão - o pavãozinho do Pará - transmitindo seguramente o melhor de um maravilhoso artista. Tudo nesta obra respira beleza infinita!

Paz e alegria que agora lhe movem, em 2007, para a produção de mais um enorme trabalho: “Justiça com Cara Amazônica”, título provisório que o artista nomeia sua atual obra, em plena produção, para o Tribunal de Justiça do Acre.

Cada vez mais acreano, cada vez mais universal, Maqueson tem hoje obras espalhadas em todo o mundo. Falta aos brasileiros de todos os cantos, conhecer esse artista estupendo e único.

Maqueson sente que venceu a luta: vive de sua arte.

Abre portas para jovens marcheteiros em sua Oficina-Escola. Sonha com seu novo projeto: uma escola lá no Seringal Flora, para ensinar aos meninos de lá tudo aquilo que aprendeu com seus amigos alemães e com o mundo, devolvendo um pouco do que lhe foi dado. Ensinar que a Floresta pode ser Pai e pode ser Mãe, provedora e amiga. 

Tem casa e familia e família linda, como essa Linda que é seu esteio e companheira, que conseguiu compreender as “escapadas” solitárias de Maqueson para embeber-se na floresta, na companhia de seus tucanos e árvores, no encontro íntimo com o velho-menino Maqueson do seringal Flora. Onde só amigos como Chiquinho, lhe fazem eventual companhia, escutando e contando estórias eternas da floresta.

Feliz, anda pelos lados de Santa Luzia, navega pelas bandas do Rio Croa, desce e sobe o Juruá, buscando em seus vales os presentes que a mata lhe dá em forma de materiais para sua arte. E aí volta a encontrar-se com o menino “medonho” de sua infância, seu alimento interminável.

“Volto às entranhas, à minha caverna, a ouvir os pássaros, a sentir o vento, as árvores! Quando volto ao “mundo” a obra está pronta na alma, pronta para o processo criativo”

Esse é Maqueson, o Artista da Floresta. Intraduzível em sua complexa simplicidade, em sua transparente humanidade misteriosa!!

Um homem que cabe completo na frase do Nietzsche, pela boca de Zaratrusta:

“É preciso ter um caos dentro de si para parir uma estrela cintilante”.